sábado, 27 de abril de 2013

A Ideia de Europa


Antes de mais, uma manifestação de interesse: sinto-me genuína e intrinsecamente europeu, tenho orgulho deste continente, apesar da muita História de que é feito. Numa palavra, serei eurocêntrico.
A origem deste livro é uma palestra de George Steiner no Instituto Nexus.
O que é que define a Europa para este pensador europeu?
Numa argumentação em 5 linhas, Steiner traça aquilo que entende serem as realidades que configuram e dão identidade à Europa:
“Cinco axiomas para definir a Europa: o café; a paisagem a uma escala humana que possibilita a sua travessia; as ruas e praças nomeadas segundo estadistas, cientistas, artistas e escritores do passado – em Dublim, até nos terminais rodoviários se indica o caminho para as casas dos poetas; a nossa descendência dupla de Atenas e Jerusalém; e, por fim, a apreensão de um capítulo derradeiro, daquele famoso ocaso hegeliano que ensombra a ideia e a substância da Europa mesmo nas suas horas mais luminosas.”
De uma forma apaixonante e enriquecedora, Steiner transporta-nos para além do olhar comum, para longe da espuma dos dias, e deixa-nos com sede de saber mais. É de tal forma assim, que li o livro duas vezes seguidas para melhor poder intuir-lhe o espírito. Para os europeus, este pequeno livro devia constar na mesa-de-cabeceira, e ser lido várias vezes por ano.

Vamos então às linhas apontadas por Steiner:

I – o café
“A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. (…) Desenha-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da «ideia de Europa».”
Embora pareça uma ideia simples, um café na Europa continental não é a mesma coisa que um pub inglês ou um bar irlandês, tal como é diferente de um bar americano. Os ambientes são diversos, os conteúdos também. As realidades humanas possíveis em cada um desses espaços são diferentes.

II - a paisagem a uma escala humana que possibilita a sua travessia
“A Europa foi e é percorrida a pé. Isto é fundamental. A cartografia da Europa é determinada pelas capacidades, pelos horizontes percepcionados dos pés humanos.”
Segundo Steiner, há uma “relação essencial entre a humanidade europeia e a sua paisagem. Metaforicamente, mas também materialmente, essa paisagem foi moldada, humanizada, por pés e mãos. Como em nenhuma outra parte do globo, as costas, os campos, as florestas e os montes da Europa, de La Coruña a S. Petersburgo, de Estocolmo a Messina, tomaram forma, não tanto devido ao tempo geológico como ao tempo histórico-humano.”
Tal como com os cafés, Steiner faz o contraponto face aos outros continentes.

III - as ruas e praças nomeadas segundo estadistas, cientistas, artistas e escritores do passado
Na Europa, os nomes atribuídos às ruas, praças, locais são os nomes de personalidades do passado. Cada recanto da Europa tem o peso da História. “Cidades como Paris, Milão, Florença, Francoforte, Weimar, Viena, Praga ou S. Petersburgo são crónicas vivas. Ler as respectivas placas toponímicas é folhear um passado presente.” O contraste, por exemplo, com os Estados Unidos, é dramático. “As avenidas, calçadas e ruas americanas são simplesmente numeradas ou, na melhor das hipóteses, como em Washington, conhecidas pela sua orientação, sendo o número seguido de «North» ou «West». E deixa esta deliciosa ironia: “os automóveis não têm tempo de considerar uma Rue Nerval ou um Largo Copernicus.”
Além deste lado evocativo, de referência histórica, cada um daqueles nomes tem uma carga histórica: “até uma criança na Europa de dobra sob o peso do passado”.
Tudo se resume nisto: “Um europeu culto é apanhado na teia de um in memoriam simultaneamente luminoso e sufocante.”

IV – a herança dupla de Atenas e Jerusalém
“Esta relação, simultaneamente conflituosa e sincrética, ocupou o debate teológico, filosófico e político desde os Doutores da Igreja a Leon Chestov, de Pascal a Leo Strauss. (…) Ser europeu é tentar negociar, moralmente, intelectualmente e existencialmente, os ideais, afirmações, praxis rivais da cidade de Sócrates e da cidade de Isaías.”
Estas heranças permitiram a música, a matemática e o pensamento especulativo. Todo o desenvolvimento de ideias que foi possível na Europa tem a sua raiz nestas duas cidades, e daqui partiu para o mundo. A filosofia, o vocabulário, mas também a matriz bíblica, pintam a traço grosso a ideia de Europa.
“O Judaísmo e as duas notas principais de rodapé, o Cristianismo e o Socialismo Utópico, são descendentes do Sinai”.

V – uma consciência própria escatológica
Uma das marcas da Europa é o facto de pensar-se a si mesma como tendo um fim, uma certa ideia de tragédia. “Muito depois daquilo que os historiadores denominam como «o pânico do ano mil», as profecias de condenação escatológica e as numerologias que procuram fixar a sua data povoam a imaginação popular europeia.”
“É como se a Europa, diversamente de outras civilizações, tivesse intuído que um dia ruiria sob o peso paradoxal dos seus feitos e da riqueza e complexidade sem par da sua História.
Duas guerras mundiais, que, na verdade, foram guerras civis europeias, conduziram a esta intimação ao ponto de ebulição.”

É à volta destas cinco linhas que George Steiner traça as fronteiras da ideia de Europa.
É a partir daqui que cabe a cada um de nós, europeus de qualquer país, pensar, compreender e defender este legado, com os seus momentos brilhantes e tenebrosos, como tudo aquilo a que o Homem põe a mão.
Fica uma certeza: conhecer o passado é compreender o presente e ter a possibilidade de projectar o futuro. A Europa tem muito passado; saibamos dar-lhe futuro.

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